É típico do debate público em Portugal que uma afirmação que alguém faz seja repetida por outros – agentes políticos, comentadores e jornalistas – sem que ninguém se dê ao trabalho de verificar se corresponde à verdade.

Por consequência, o debate desenvolve-se frequentemente com base em pressupostos falsos, que induzem toda a gente em erro. E quando surge um desmentido factual, raramente os que divulgaram a falsidade têm paciência para perder tempo com esclarecimentos. Desconstruir uma afirmação falsa torna-se, assim, muito difícil, quando não impossível. Mas é preciso não desistir.

Regresso, por isso, a um tema a que aludi aqui na semana passada quando afirmei que é falso que o Memorando da ‘troika' obrigue a que a redução do défice seja feita em 2/3 do lado da despesa. E retomo o assunto por duas razões: primeiro, porque não é uma questão menor - este é um dos principais argumentos do Governo para insistir no corte do 13º e do 14º mês dos funcionários públicos e dos pensionistas; segundo, porque o ministro Miguel Relvas apareceu esta semana nas televisões repetindo esse argumento falso e o mesmo fez o primeiro-ministro no Parlamento. Insisto, pois, na reposição da verdade. E faço mais: apresento provas, através das citações apropriadas, para resolver de vez o assunto.

O que diz, então, o Memorando da ‘troika'? Na versão de Maio, o que está lá escrito é isto: "... para atingirmos os objectivos traçados para 2012-13, é necessário tomarmos medidas correspondentes a cerca de 5% do PIB em 2012-2013 (...). Quanto à conjugação de políticas (‘policy mix'), as medidas do lado da despesa representam 3,5% do PIB e as medidas do lado da receita representam 1,4% do PIB" (cfr. pág. 2). Nada mais.

A conclusão é clara e objectiva: o Memorando limita-se a constatar e a quantificar o esforço programado, do lado da despesa e do lado da receita, tal como previsto nas medidas acordadas em Maio. Não se define nenhuma regra de 2/3 para a repartição do esforço entre despesas e receitas que tenha obrigatoriamente de ser respeitada em qualquer pacote futuro de medidas adicionais, sejam elas quais forem - isso não está previsto, isso não existe!

Mas há mais. Convém lembrar que existe hoje uma nova versão do Memorando, com data de 1 de Setembro. Nessa versão "actualizada", já negociada pelo actual Governo, foi inscrita uma referência expressa à necessidade de medidas adicionais em 2012, para corrigir o alegado "desvio". Será que foi aí que a ‘troika' impôs a tal regra dos 2/3, de que tanto fala o Governo? Não há como ler para ter a certeza: "Serão tomadas (para 2012) outras medidas, principalmente no lado da despesa, para preencher o hiato resultante dos desvios em 2011, que podem ser de cerca de 0,6% do PIB" (cfr. pág. 3). E não se diz mais nada. Conclusão: não há, também aqui, nenhuma referência à regra dos 2/3.

A explicação é simples: a "regra" que o Governo diz que está prevista no Memorando não existe. Não há, portanto, nenhuma chave de repartição aritmética que obrigue o Governo a adoptar medidas tão injustas apenas porque são "do lado da despesa". Isso não passa de uma invenção destinada a tentar transferir para as costas largas da ‘troika' as responsabilidades que são do Governo pelas medidas injustas que escolheu.

Bem sei, não é por o assunto ficar aqui esclarecido, com provas factuais, que deixaremos de ouvir dizer que "há no Memorando da ‘troika' uma regra que impõe uma redução do défice feita em 2/3 do lado da despesa". A diferença é que, a partir de hoje, se tornar a ouvir dizer isso, saberá que está a ser enganado. E saberá também quem é que o quer enganar.

 

Artigo publicado no Diário Económico