O ministro das Finanças alemão não cabe em si de contente: o Governo grego, garantiu ele, terá muitas "dificuldades em explicar o acordo aos seus eleitores". Diz-se que era exactamente assim que Nero sorria ao ver as chamas na capital do seu império.

Aprecio o esforço dos que andam a vasculhar nas entrelinhas do pré-acordo entre a Grécia e o Eurogrupo e da "primeira" (sic) lista de reformas com que o novo Governo grego se comprometeu em Bruxelas (cuja versão final só ficará estabelecida no mês de Abril) em busca dos raros vestígios das conquistas obtidas pelo Syriza. Sem dúvida, o combate travado em defesa de uma alternativa política não austeritária e da própria dignidade do povo grego é merecedor de respeito. E é certo que alguma coisa foi alcançada graças a esta nova atitude negocial.

Mas não adianta iludir a realidade: a permanência da Grécia no Euro e as garantias (provisórias) de financiamento do Estado e da economia helénicos foram conseguidos à custa de uma cedência generalizada por parte do Governo grego quanto à execução de uma parte substancial do seu programa político, tal como votado pelos eleitores. E a dimensão da cedência tenderá a revelar-se ainda maior quando o Governo de Atenas for chamado a detalhar e quantificar o impacto orçamental de algumas das medidas que agora anunciou, explicando, por exemplo, o que significa "racionalizar" as taxas do IVA para "maximizar as receitas", eliminar "benefícios fiscais" nos impostos sobre o rendimento, acabar com "benefícios não salariais" na função pública ou adoptar "medidas de redução da despesa" em todos os ministérios, incluindo nas áreas sociais.

Curiosamente, como aliás os próprios logo trataram de sublinhar, o melhor que Alex Tsipras e Yanis Varoufakis têm para mostrar é o que não está no acordo: não haverá despedimentos na função pública; não haverá cortes nos salários e nas pensões; não haverá aumentos de impostos para os mais pobres e a classe média e não haverá aumentos do IVA na alimentação e na saúde. Apetece perguntar: este discurso explicativo não vos faz lembrar nada? Talvez uma certa esquerda entenda agora melhor a gravidade da situação que o Governo socialista teve de enfrentar em 2011 quando foi forçado a pedir ajuda externa e a negociar o Memorando de Entendimento em consequência do constrangimento financeiro causado pela reacção do BCE e dos mercados ao "chumbo" do PEC IV. Assumir a responsabilidade de governar tem destas coisas: começa logo a ver-se o Mundo de outra maneira.

O directório alemão e os demais defensores da "linha dura", com o Governo português na dianteira, exultam com esta vitória esmagadora da austeridade. Embalados pelo triunfo, julgam-se com resposta para tudo: os eleitores gregos votaram contra? "Tanto pior. A austeridade está inscrita nas regras, não depende do voto. E a vontade dos gregos não vale mais do que a dos outros". Não lhes ocorre reconhecer a ficção em que assenta a legitimidade democrática da política europeia de austeridade e menos ainda que o flagrante desprezo pelos resultados eleitorais na Grécia é apenas mais lenha para a fogueira do projecto europeu. Talvez por isso, há um ambiente pesado de claustrofobia democrática nesta festa da política de austeridade. Mas não deixa de haver também uma vistosa passadeira vermelha. E é por lá que ainda há-de desfilar a senhora Le Pen.

 

Artigo publicado no Diário Económico