A proposta do Governo para alterar o Código do Trabalho prevê uma nova e perigosa figura para a flexibilização dos horários de trabalho: o chamado “banco de horas individual”.

Do que se trata é de permitir que o período normal de trabalho possa ser aumentado até duas horas diárias e 50 horas semanais, com o limite de 150 horas por ano. Com uma particularidade: até aqui isto tinha de ser previamente regulado por convenção colectiva de trabalho e a partir de agora poderá ser estabelecido por mero "acordo" directo entre o empregador e cada trabalhador. E é também nessa sede "privada" que deverão ser fixadas, nos termos da lei, as compensações aplicáveis. Mais: proposto o "acordo" pelo empregador, presume-se a sua aceitação por parte do trabalhador, a menos que este se encha de coragem e se oponha, por escrito, à proposta do patrão (no prazo de 14 dias).

Como está bem de ver, a referência a um "acordo" (ainda por cima tácito) entre o empregador e o "trabalhador individual" é um mero eufemismo. Do que estamos a falar, verdadeiramente, é de um "banco de horas patronal" que passará a poder ser imposto pelos empregadores - visto que a capacidade negocial dos trabalhadores, isoladamente considerados, é obviamente nenhuma. É por essa razão, aliás, que a regulação dos horários de trabalho foi identificada, desde os primórdios do Direito do Trabalho, como questão-chave. E é também por isso que a actual legislação (mesmo admitindo soluções de adaptabilidade individual do período de trabalho, através da sua definição em termos médios), recusa o "banco de horas individual". Na verdade, permitir que a regulação do "banco de horas" seja remetida para um quadro de individualização das relações laborais é entregar às entidades patronais, com a sua natural posição de supremacia, aspectos tão vitais como o aumento do horário de trabalho ou o direito ao descanso. Mas é também retirar aos trabalhadores qualquer possibilidade de defenderem e organizarem as condições de conciliação entre a vida profissional e a vida familiar - sendo, aliás, absolutamente extraordinário que esta proposta venha, justamente, de quem nos habituou a tantos discursos em defesa do valor da família!

Poderá perguntar-se: mas esta reforma laboral não se limita a cumprir o memorando da ‘troika'? A resposta, lamento dizê-lo, é "não". O "banco de horas individual" não está no memorando. E, para que não restem dúvidas, aqui fica o que está efectivamente escrito no acordo que o Governo anterior assinou com a ‘troika': "O Governo irá elaborar uma avaliação relativa à utilização dada ao aumento dos elementos de flexibilidade pelos parceiros sociais, associados à revisão do Código do Trabalho de 2009 e preparar um plano de acção para promover a flexibilidade dos tempos de trabalho, incluindo as modalidades que permitam a adopção do regime laboral do "banco de horas", por acordo mútuo entre empregadores e trabalhadores AO NÍVEL DA EMPRESA". Ou seja: o que o memorando prevê é que o "banco de horas", em vez de ser regulado por contratação colectiva sectorial, possa ser regulado, também colectivamente, mas "AO NÍVEL DA EMPRESA" - nunca por acordo directo do empregador com cada trabalhador, como "banco de horas individual". Já não sei se é defeito ou feitio, mas uma coisa é certa: também no Código do Trabalho, o Governo está a ir "além da ‘troika'". E está a ir mal.

 

Artigo publicado no Diário Económico