O terramoto político do "Brexit" - que se anunciava desde a vitória do UKIP nas eleições europeias e se tornou iminente com a divisão no Partido Conservador - abalou profundamente os alicerces da construção europeia, mas não é certo que tenha provocado danos estruturais irreparáveis.

Perigosas, a sério, são as previsíveis réplicas nos vários países europeus onde se avolumam ondas populistas e xenófobas, quase sempre lideradas pela extrema-direita nacionalista, por vezes em aliança objetiva com movimentos anti-sistema e uma certa esquerda soberanista.

Ainda que mais pobre e mais fraca, uma União Europeia capaz de se reencontrar com os seus valores e o seu projeto pode certamente resistir à saída do mais renitente dos seus membros, mesmo tratando-se de uma poderosa economia, com assento no G7 e direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas sem dúvida sucumbirá se, depois do terramoto britânico, for assolada por um Tsunami referendário ou eleitoral que, em nome das democracias nacionais, proporcione noutros países o triunfo das ilusões soberanistas e protecionistas – e com elas a vitória da lógica do egoísmo, com a qual não haverá futuro para o projeto europeu.

E por falar em futuro, não percamos de vista o passado: mais do que uma precipitação, é um erro decretar, como alguns já se apressam a fazer, que a União Europeia é "um projeto falhado", como se a construção europeia, apesar das múltiplas crises que hoje enfrenta, não tivesse dado a uma Europa dilacerada por guerras e horrores o bem inestimável de décadas de paz, cooperação solidária, prosperidade, proteção social e qualidade de vida para os seus cidadãos. Dito isto, é preciso dizer também que não menos errado seria pretender responder ao desafio colocado pelo "Brexit" e pelas crescentes pulsões nacionalistas apenas de livros de História na mão e entoando os acordes do "Hino da Alegria", como se não fosse preciso dar uma resposta política forte, que faça sentido para a vida dos cidadãos.

A complexa encruzilhada em que se encontra a construção europeia faz lembrar aqueles problemas de xadrez que os jornais costumam publicar, em que as peças surgem colocadas no tabuleiro apresentando uma situação aparentemente desequilibrada, de forma a colocar ao jogador um desafio complicado mas em que, bem vistas as coisas, é possível encontrar um movimento ganhador: "as brancas jogam e ganham", é o que anunciam esses intrigantes problemas. Algo de semelhante se passa hoje com o projeto europeu: embora o jogo pareça perdido, a União Europeia pode ter um futuro ganhador se os líderes europeus souberem responder com o movimento certo.

Deste ponto de vista, a negociação da saída do Reino Unido da União Europeia, ao abrigo do agora famoso Artigo 50º do Tratado de Lisboa, embora importante, é uma parte menor da equação. Sem conferir ao Reino Unido um estatuto especial que funcione como incentivo a outras saídas, será preciso encontrar, com pragmatismo, um quadro de relacionamento vantajoso para ambas as partes, potenciando os benefícios do Mercado Único e acautelando os interesses dos cidadãos europeus (muitos dos quais portugueses) que residem do lado de lá do canal da Mancha. Porém, a questão decisiva é outra: o que é que a União Europeia tem a dizer sobre o seu próprio futuro?

Para corresponder aos anseios dos cidadãos, a resposta europeia precisa, antes de mais, de reencontrar e reafirmar aquilo que une e dá sentido ao projeto europeu: na base, os valores do humanismo e da democracia; nos desígnios, a tripla ambição de paz, de prosperidade e de convergência. Uma Europa de regras rígidas, impostas por burocratas à força de sanções injustas e contraproducentes; uma Europa com uma moeda única inacabada, geradora de novas assimetrias e apesar disso hesitante entre o fantasma do "risco moral" e a sujeição à especulação financeira; uma Europa de credores e devedores, à medida do interesse de uns contra os interesses da periferia; uma Europa ainda de mãos atadas, oito anos depois do início da crise, para responder de forma drástica ao drama do desemprego – essa Europa precisa de mudar, e mudar bastante, se quiser superar a sua atual crise de resultados e dar uma resposta adequada.

A meu ver, essa resposta passa por um movimento duplo: por um lado, um novo impulso para a democracia nas instituições europeias; por outro, um novo impulso para a prosperidade e para a convergência nas políticas. Em breve saberemos se os líderes europeus têm a lucidez suficiente para encontrar a solução ganhadora.
 
Artigo publicado no Jornal de Negócios