Pare, escute e olhe - um discurso pode revogar outro. Foi o que aconteceu esta semana: o discurso do Presidente da República no 5 de Outubro revogou o seu discurso de tomada de posse.

Para verificar que é assim basta lembrar os dois factos políticos mais importantes que marcaram o discurso do Presidente no início deste seu segundo mandato e confrontá-los com o teor do seu discurso do dia 5.

O primeiro facto político do discurso de tomada de posse, recorde-se, foi o "apagão" da crise internacional. Tal como sublinharam os mais insuspeitos comentadores, o Presidente conseguiu estar 45 minutos a descrever as dificuldades da economia portuguesa, comparando indicadores do início e do fim da última década, sem nunca fazer a mais pequena referência à maior crise internacional desde 1929 (que interrompeu a recuperação registada entre 2005 e 2007 e prejudicou os indicadores de todas as economias) ou à crise das dívidas soberanas (iniciada em 2010).

Mais: o Presidente, não querendo "insultar os mercados", omitiu qualquer referência à crise sistémica do euro e à ausência de uma resposta eficaz no plano europeu aos ataques especulativos, com as consequências daí decorrentes para as economias ditas periféricas, a começar pela Grécia, e para a difusão de inevitáveis efeitos de contágio.

Que diz agora, poucos meses depois (mas já com novo Governo), o mesmo Presidente da República? Num discurso orientado para explicar as dificuldades que o País enfrenta, o Presidente, acredite-se ou não, começou, precisamente, por contextualizar a crise da economia portuguesa na crise internacional e na crise do euro! Não tinha passado o primeiro minuto de discurso e já o Presidente dizia: "No plano internacional, emergem sinais preocupantes de que a situação económica e financeira se poderá agravar de novo. Num mundo cada vez mais globalizado e interdependente, o mau desempenho das economias desenvolvidas irá reflectir-se inevitavelmente sobre as outras economias". E logo acrescentou: "a Europa encontra-se numa encruzilhada (...). O fracasso da experiência do euro iria arrastar consigo toda a União, mergulhando-a num turbilhão de resultados imprevisíveis. A diluição da zona euro seria o início de um processo que culminaria na destruição da Europa unida". Registada a primeira diferença, palavras para quê?

O segundo facto político do discurso de posse do Presidente foi a já célebre afirmação de que "há limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos". Essa investida do Presidente contra as medidas de austeridade adoptadas pelo Governo minoritário socialista, num momento delicado nos mercados financeiros, foi recebida com o expectável aplauso demagógico das oposições e acabaria por inspirar, 48 horas depois, a decisão do PSD de chumbar o PEV IV, em nome (convém lembrá-lo) da contestação ao aumento dos impostos. Daí até à formação de uma coligação negativa para provocar uma crise política foi um passo - um passo dado, aliás, com a plena consciência de que iria arrastar Portugal para a ajuda externa, como veio a acontecer.

Que diz agora o Presidente, no momento em que o novo Governo PSD-CDS impõe ainda mais sacrifícios "ao comum dos cidadãos", corta metade do 13º mês e aumenta impostos, tarifas e transportes muito para lá do que era exigido pela "troika"? Desta vez, a "teoria dos limites para os sacrifícios" deu lugar à "pedagogia dos sacrifícios". Explicou o Presidente: "estamos confrontados com uma situação que irá exigir grandes sacrifícios aos portugueses, provavelmente os maiores sacrifícios que esta geração conheceu". Aí está, clara e notória, a segunda diferença.

O segundo mandato do Presidente da República evidencia, pois, duas fases bem distintas: a primeira, de intensificação do combate político ao Governo socialista, durou apenas alguns dias, iniciou-se com o discurso de tomada de posse do Presidente e terminou com a demissão do então Primeiro-Ministro. A segunda, de convergência política com o Governo PSD-CDS, teve início com o inusitado discurso orientador da governação proferido pelo Presidente no acto de posse do novo Governo e foi pontuada pela solidariedade política expressa na recente entrevista à TVI e neste discurso do 5 de Outubro. Duas fases, dois governos, duas atitudes, dois discursos presidenciais contraditórios.

É certo, não deixaram de se ouvir no dia 5 de Outubro alguns dos tradicionais "avisos" do Presidente. À cautela, e para memória futura, o Presidente vincou o "aviso" de que as medidas de austeridade devem ser acompanhadas de medidas que permitam "a curto prazo, sinais de recuperação económica". Em bom português, o que se passou foi isto: o Presidente colou-se às medidas recessivas mas demarcou-se da recessão. E dali seguiu para o Palácio de Belém, para receber a visita de populares e turistas. É tão fácil ser Presidente!

 

Artigo publicado no Diário Económico