Para o eurodeputado Pedro Silva Pereira, o euroceticismo "é um risco" ao qual Portugal não é imune.

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TSF: Agora mesmo a valer, o Reino Unido vai mesmo deixar a União Europeia?

Pedro Silva Pereira: O Reino Unido vai mesmo deixar a União Europeia a partir de 31 de janeiro à noite acaba de facto esta ligação longa, de décadas, do Reino Unido enquanto membro da União Europeia.

Houve ao longo destes três anos e meio algum momento em que chegasse a pensar que este processo podia ter outro desfecho?

Sim, houve vários momentos em que muita gente acreditou que o desfecho pudesse ainda ser diferente, mesmo depois do referendo no Reino Unido. O resultado nesse referendo foi alcançado por uma pequena margem, depois o processo arrastou-se durante anos no próprio Reino Unido, com muitas controvérsias internas. Mas, sobretudo, porque à medida que se ia avançando na negociação do acordo de saída ia-se percebendo que o Brexit real era muito diferente do Brexit prometido. E, portanto, teria feito sentido que o Reino Unido tivesse feito um outro referendo para atualizar no fundo o consentimento dos cidadãos, agora já não sobre um Brexit ilusório, mas sobre um Brexit real, aquele que é possível e que foi concretizado nas negociações. Isso não aconteceu. Esses desenvolvimentos políticos no reino Unido não se tornaram viáveis neste curto espaço de tempo e a partir daí, à União Europeia apenas restou realmente reduzir os danos. Este acordo de saída, celebrado entre a União Europeia e o Reino Unido, é sobretudo um acordo de controlo de danos porque o Brexit é sempre mau, o Brexit é negativo para a União Europeia, mas é negativo também para o Reino Unido. E, portanto, um acordo de saída é a forma de minimizar esses danos.

Foi só por isso que na sua intervenção esta semana antes da votação do acordo no parlamento europeu descreveu o momento como uma infelicidade? Ou também porque significa que a construção europeia deixou de ser irreversível?

Não. Nós sabíamos, isso está claramente estabelecido no Tratado de Lisboa, que o estado pode sair da UE, querendo. É uma questão de vontade soberana. Ninguém está amarrado ao projeto europeu para todo o sempre. Acontece é que a minha convicção e a convicção de muitos é que o projeto europeu é uma coisa boa. Ele deu décadas de paz à Europa, ele permitiu uma prosperidade que nós portugueses podemos avaliar bem porque o país que temos hoje é muito diferente daquele que tínhamos quando aconteceu a adesão portanto o país deu um grande salto qualitativo, e outros países que entretanto aderiram estão a fazer o mesmo. É claro que é preciso que a UE reencontre a sua ambição de convergência, que se reencontre com os seus valores originais, tudo isso é necessário, são necessárias muitas reformas na união, mas o projeto europeu é um projeto importante. E por isso quando um estado com a importância política e económica do Reino Unido sai, esse é inevitavelmente um momento triste na história da construção europeia mas também na história da própria Europa. Dentro de algum tempo nós olharemos para este momento de rutura como um momento penso eu triste para a europa porque a Europa perde não apenas um membro, perde também a capacidade de trabalharmos juntos como até aqui para enfrentar os nossos desafios comuns.

Que impacto é que podemos esperar da saída do Reino Unido, 31 de janeiro é de facto o primeiro dia do fim da UE como vaticinou por estes dias Nigel Farage?

Não acho nada que seja o fim da UE, é certamente o fim da UE como a conhecemos até hoje com o Reino Unido dentro. O Reino Unido sai, a UE fica diferente, perde é verdade um parceiro importante e que lhe ajudava a dar dimensão internacional e global. Mas é verdade que a UE continua a ser um enorme parceiro comercial e uma voz muito relevante na cena geopolítica à escala global, isso não se perde. Acho também que ao longo do processo do Brexit, uma das surpresas agradáveis que também houve, ao longo deste processo foi o facto de os Estados europeus terem conseguido falar a uma só voz, durante um processo de negociação. Eu diria que, em certo sentido, houve até um reforço do sentimento de unidade europeia, daqueles que ficam, que são quase todos menos o Reino Unido.

Como é que foi possível conseguir concertar todos estes países com interesses divergentes, numa discussão tão sensível como é o Brexit?

 

Penso que foi sobretudo a consciência de que estava em jogo um interesse vital, um interesse vital para a própria existência da UE. Depois, também é verdade que a equipa negocial, dirigida pelo senhor Barnier fez um excelente trabalho de articulação entre as posições dos vários estados membros expressas no conselho e também de articulação com o Parlamento Europeu. Houve um nível de envolvimento e de participação, de controlo eu diria até do parlamento europeu sobre este processo negocial, como poucas vezes assistimos no passado. O Parlamento Europeu ganhou ainda mais força com a sua participação nesta negociação. Eu acho que isso foi sobretudo um resultado da consciência de que estava em jogo alguma coisa de muito importante para o futuro da Europa.

"Europa precisa de se reencontrar com as expectativas dos seus cidadãos"

Dentro de todas as causas que conduziram ao Brexit, identifica alguma em que seja necessário haver um mea culpa da parte da UE?

Bom, com certeza, várias. Mas eu creio que infelizmente a causa primeira do Brexit é o ascendente do egoísmo na Europa, essa ideia de que sozinhos talvez nos safemos melhor. Esta ideia terrível que parece que fez curso no Reino Unido faz também algum trajeto nalguns outros países europeus e vende a ilusão de que talvez regressando às fronteiras nacionais, a um passo mítico que verdadeiramente nunca existiu, as coisas possam ser diferentes e melhores. Como se os problemas que temos pudessem ser melhor enfrentados se estivermos cada um para seu lado. Ora, dá-se exatamente o contrário. Não é pensável enfrentar o desafio das migrações sem uma cooperação entre os estados europeus e uma solidariedade, desde logo, com aqueles que têm uma fronteira marítima e que estão mais sob a pressão das migrações, nós não podemos enfrentar o desafio das alterações climáticas, sem uma cooperação internacional e que coloque também a UE com uma voz forte no processo de discussão sobre as questões do combate às alterações climáticas e também do desenvolvimento sustentável. Eu também tenho dificuldade em identificar problemas que sejam melhor resolvidos com a separação e com a divisão. Creio que essa foi a grande ilusão que foi vendida no brexit, explorou o egoísmo, explorou os descontentamentos que existiam na sequência da crise financeira e um certo sentimento de insegurança, explorou também, um sentimento de desconforto em relação àquilo que se chamou a invasão dos migrantes, particularmente aqueles que eram de outras culturas e essas visões muito distorcidas da realidade provocaram aquilo que temos. Agora, é verdade e não quero deixar de o sublinhar também que a Europa precisa de levar a sério este aviso e isto significa que precisa de se reencontrar com as expectativas dos seus cidadãos.

Nigel Farage dizia esta semana que Itália, Polónia e Dinamarca poderiam ser países potencialmente com vontade de seguir o Reino Unido para fora da UE. Identifica também esse risco noutros países?

 Os riscos existem a partir do momento que os movimentos nacionalistas e populistas ganham ascendente em diversos países. Mas também é verdade que alguns dos países onde essa tentação eurocética chegou quase às fronteiras do poder ou mesmo ao poder, depois em última análise deram um passo atrás quando tomaram consciência do abismo que isto significava e também da trapalhada em que os britânicos se meteram com esta questão do brexit. Mas, por exemplo na Grécia houve essa tentação de rutura desde logo com o euro e depois deu-se um passo atrás, tivemos um governo de extrema-direita em Itália que também teve essa tentação e finalmente acabou por dar um passo atrás e agora o senhor Salvini acaba de ter uma derrota importante nas eleições regionais em Itália, portanto riscos existem. Mas, também é verdade que a onda populista está longe de ser uma onda triunfante na Europa e nós temos de ter consciência que, nas últimas eleições europeias, as forças pró projeto europeu foram e continuaram a ser maioritárias e portanto, a Europa - está certamente a precisar de reformas internas - mas continua a ser a plataforma em que se revêm a maior parte dos cidadãos europeus.

Portugal "nunca esteve imune" ao populismo eurocético

Nos últimos tempos temos assistido a uma tendência chamemos-lhe mais populista na Assembleia da República. Portugal está livre do euroceticismo?

Portugal nunca esteve imune ao populismo, ou ao risco de ver surgir movimentos de extrema-direita e agora há pelo menos um com expressão parlamentar. Mas uma expressão parlamentar reduzida, eu acho que nós devemos dar-lhe a importância que tem e não mais do que aquela que tem. E portanto, sim existe esse risco, a melhor forma de lhe dar resposta são políticas públicas de combate às desigualdades, são políticas públicas de combate à pobreza, são políticas que deem aos cidadãos sentimentos de segurança. São sobretudo ações que impliquem uma pedagogia dos nossos valores comuns. Solidariedade em vez de egoísmo e o valor dos direitos humanos, em vez desta tentação que nos põe uns contra os outros e que nos põe uns com medo dos outros, porque isso não nos leva a lado nenhum.

 

Tem sido dito que 11 meses é curto para fechar negociação da relação futura. Teme que este processo possa não correr bem?

Não está escrito em lado nenhum que o processo tenha necessariamente que acabar bem. E, portanto, devemos estar atentos e vigilantes e participantes no processo, para que ele chegue a bom porto. É muito importante as pessoas perceberem que, com a votação do acordo de saída do Reino Unido, entramos num período de transição até ao final do ano em que tudo se mantém. Os direitos dos cidadãos mantêm-se, o quadro de relações económicas e comerciais mantém-se integralmente. Mas, precisamos realmente de negociar a relação económica futura. Esta negociação envolve um desafio diferente de todos os outros acordos comerciais. Porque, em todos os outros acordos comerciais que fizemos no passado, falamos de realidades económicas diferentes, que queremos que convirjam de maneira a nós podermos eliminar as barreiras ao trafego comercial entre os diferentes países. Neste caso, é o contrário. Nós partimos de uma situação de grande integração económica, de grande convergência e confrontamos com o facto de o Reino Unido querer divergir, quer ter a famosa autonomia regulatória e portanto ter as suas próprias regras. Ora, isso coloca problemas que precisam de ser geridos. Como é que nós podemos ao mesmo tempo ter uma situação em que o Reino Unido tem as suas próprias regras e não termos controles nas fronteiras? Em que os produtos e as pessoas que passam na fronteira são controladas de maneira a podermos ter uma concorrência leal e uma situação de manutenção dos nossos padrões de proteção ambiental e dos direitos dos consumidores. Isso é complicado e é isso que vai estar essencialmente no centro das negociações.

E isso pode fazer estender as negociações para lá desses 11 meses? O Reino Unido deveria de pedir uma extensão do período de transição?

Não é sensato partir para estas negociações excluindo qualquer possibilidade de prorrogação, como tem feito o primeiro-ministro, Boris Johnson. Isso é um absurdo, porque qualquer pessoa que saiba que os acordos comerciais na maior parte dos casos demoram anos a ser negociados e que tenha consciência da complexidade dos assuntos que temos para discutir, compreende que isto não se pode discutir facilmente, em meia dúzia de meses, porque é realmente de meia dúzia que estamos a falar pouco mais. Durante o mês de fevereiro, ambas as partes vão definir os seus mandatos negociais, as negociações só começam em março e precisam de estar terminadas no outono, para que o novo acordo sobre a relação futura entre em vigor logo no dia 1 de janeiro de 2021. Portanto tudo tem que ser negociado em meia dúzia de meses, pouco mais, com o verão pelo meio. Ora evidentemente que não é do domínio do razoável excluir a possibilidade de um adiamento da negociação.

Mas tendo em conta que Boris Johnson muito dificilmente fará um pedido para dilatar o período de transição, podemos andar aqui em dezembro a falar outra vez de um Brexit sem acordo?

Sim, podemos com certeza. De facto, a grande vantagem do acordo de saída foi que ele criou um período transitório e isso afastou - por agora - o cenário de uma saída sem acordo. Mas o Brexit sem acordo pode tornar a ser uma ameaça, já no final deste ano. E, portanto, vamos ser confrontados com esse dilema, de resolvermos os problemas desta relação futura ou se não os resolvermos a contento e se não adiarmos o prazo, então corremos todos o risco de um cenário catastrófico de um Brexit sem acordo.

Ou seja, isto quer dizer que alguma desta discussão pode sobrar para a presidência portuguesa?

Pode acontecer, com certeza, qualquer prorrogação do prazo de negociação que eu imagino que seja um cenário que se vai colocar significa que este dossiê se transfere para o primeiro semestre de 2021 e portanto para a presidência portuguesa. Mas não é a primeira vez que Portugal recebe problemas difíceis por resolver, foi assim com o Tratado de Lisboa que não foi fechado na presidência alemã. Espero que não seja o caso desta questão do brexit, mas se for, enfim cá estaremos, com certeza, para dar o nosso melhor.

Durante o debate antes da votação vimos muitos deputados britânicos emocionados em particular a delegação trabalhista que assinalou o momento com uma despedida emocionada, vai sentir-se falta destes deputados na instituição, não digo só do ponto de vista humano mas também do trabalho que eles faziam e fizeram?

Sim, com certeza. Os deputados britânicos em particular os deputados trabalhistas mas não só deram um contributo muito qualificado para os trabalhos do parlamento europeu e portanto a sua ausência vai ser muito notada, já temos saudades e o Brexit só agora está realmente a acontecer. Mas, temos esperança que seja possível estabelecer uma relação futura a altura daquilo que são as expectativas dos cidadãos e das empresas, porque realmente o Reino Unido foi um parceiro importante, foi um membro importante da UE, de Portugal foi historicamente desde sempre um parceiro político muito relevante. E, portanto, nós estamos empenhados sinceramente empenhados numa boa negociação. Agora, nada pode fazer desaparecer como um passo de mágica os problemas que existem e esses problemas precisam realmente de ser resolvidos. Há uma expressão que os portugueses vão se habituar a conhecer, uma expressão inglesa que é do chamado "level playing field" e é muito importante que tomem consciência do que isto significa, quer dizer a UE deseja que, para a relação económica futura, as condições de concorrência entre as empresas portuguesas e as empresas britânicas assegurem o quadro idêntico, que permitam uma concorrência sem distorções e justa. Ora, este "level playing field", esta ideia de haver condições equilibradas de jogo precisa de ser assegurada na mesa das negociações e aquela ambição que todos temos de um acordo comercial sem tarifas, sem quotas, com o menos possível de fricção na fronteira, essa ambição só é possível se do lado britânico for assegurado o tal "level playing field", o mínimo de alinhamento regulatório que nos permita manter os nossos padrões ambientais e sociais. Gostava até de dar um exemplo. O senhor Trump fala muito de fazer um acordo sempre fantástico com o Reino Unido dentro da lógica de America First - porque os acordos fantásticos para ele são os acordos bons para a América. Mas, imaginemos por hipótese que o Reino Unido fazia um acordo comercial com os EUA e que os EUA poderia exportar para o mercado britânico carne produzida com hormonas, que é proibida no mercado europeu, por razões de segurança alimentar e de direitos dos consumidores. Evidentemente, esta carne produzida com hormonas que por hipótese entrasse no mercado britânico não poderia chegar ao mercado europeu sob pena de introduzir aqui uma distorção e de baixar os nossos padrões de segurança alimentar. Ora, como é que isto se assegura se não for através de um controlo na fronteira? Portanto, quanto mais o Reino Unido desalinhar e este é apenas um exemplo, quanto mais o Reino Unido desalinhar e quiser ter as suas próprias regras negociadas com outros, evidentemente que a integridade do mercado único vai implicar então que por consequência nós vamos ter que ter mais restrições na fronteira, que é a ultima coisa que as empresas desejam.

Backstop "longe de estar resolvido"

E a questão do backstop ficou resolvida com esta última adenda ao tratado de saída?

Bom, infelizmente os problemas na fronteira da Irlanda estão longe de estar resolvidos. Nós temos uma solução que, se houver boa-fé de ambas as partes, pode funcionar. A nossa ideia é fronteira aberta entre a Irlanda do Norte e a Irlanda, de maneira a preservar o acordo de sexta-feira santa e o processo de paz. Em contrapartida, se não há controlo nessa fronteira que passa a ser a fronteira externa da UE, então tem que haver uma fronteira noutro lado e portanto uma fronteira entre a Irlanda da Norte e a Grã-Bretanha, no mar da Irlanda. Acontece que o senhor Johnson tem vindo a dizer nas últimas semanas que não tenciona implementar os controlos fronteiriços nessa fronteira apesar de eles estarem previstos no acordo de saída. Ora, evidentemente que se não houver um controlo nessa fronteira como está previsto, então nós deixamos de poder assegurar que, na fronteira entre as duas irlandas, ou seja, na fronteira externa da UE a integridade do mercado único está salvaguardada. E portanto tudo depende realmente da boa-fé na execução deste acordo e o que a UE certamente vai exigir é que o Reino Unido honre os seus compromissos e isso significa que no mar da Irlanda, entre a Irlanda da Norte e a Grã-Bretanha existam os controlos fronteiriços que têm que existir para que possamos salvaguardar a integridade do mercado único.

Alguma das prioridades que foram negociadas pode estar em causa, nomeadamente os direitos dos cidadãos, por exemplo?

Entendemos que as prioridades que estão no acordo de saída são todas muito importantes, vemos uma situação de risco nesta questão dos controlos fronteiriços entre a Irlanda da Norte e a Grã-Bretanha. No que diz respeito aos direitos dos cidadãos, o parlamento europeu já se pronunciou assinalando a sua preocupação, sobretudo com o modo prático, como o Reino Unido está ou não está a assegurar estes direitos dos cidadãos. Por exemplo, há um procedimento de reconhecimento dos direitos de residência para os cidadãos europeus e muitos portugueses que vivem na Reino Unido há pelo menos 5 anos. O procedimento está a correr, já foram introduzidas uma série de simplificações importantes. Mas, atualmente, no final do processo, não é atribuído aos cidadãos que têm o direito de residência um cartão confirmativo dessa condição. O que significa que, no futuro, mesmo cidadãos europeus com direito de residência reconhecido na prática têm dificuldade ou quando circulam nas fronteiras, no aeroporto ou quando querem alugar uma casa e fazem um contrato de arrendamento ou quando procuram emprego podem ter dificuldade em provar porque a única coisa que têm será um e-mail que terão alguma vez recebido, podem ter dificuldade em provar o direito de residência, isso cria na prática um grande sentimento de insegurança de muitos cidadãos europeus e dos portugueses e portanto aí está um exemplo, a UE e o parlamento europeu têm vindo a insistir para que o Reino Unido crie um cartão físico que seja um elemento que dê aos cidadãos a garantia de que os seus direitos são para valer e que não precisam de estar constantemente sujeitos à dúvida de terceiros a propósito da sua condição.

A despedida dos deputados britânicos aqui no parlamento europeu foi assinalada com a canção "Auld Lang Syne" com todos os deputados de mãos dadas, também cantou?

Também cantei, com bastante emoção porque foi de facto um momento muito emotivo e é aliás uma música de um autor escocês.

Sabe se houve alguma razão especial para a escolha do poema que é tradicionalmente uma canção de amigos, com que os escoceses celebram o novo ano?

Sim, os escuteiros costumam utilizar essa música como a canção do adeus. E, portanto, faz um certo sentido no momento. Mas o facto de ser de um autor escocês também tem muita relevância, porque um dos impactos negativos do Brexit, - o Brexit tem muitos impactos negativos -, mas um deles diz respeito à própria unidade do Reino Unido, neste momento a Escócia está muito desiludida com este desenvolvimento porque votou no referendo para permanecer no Reino Unido porque isso seria a condição para estar na UE e afinal é obrigada a sair. E, mesmo na Irlanda, as pessoas estão muito insatisfeitas, mesmo aquelas que eram a favor do Brexit estão muito insatisfeitas com o acordo, por uma razão simples, é que é impossível cumprir as ilusões do acordo do Brexit. É impossível. Todas aquelas fantasias de que agora não há mais contribuições para a UE, como se não houvesse acordos financeiros firmados, a ideia de que saímos e não há problemas nas fronteiras, a ideia de que saímos e na Irlanda do Norte não haverá também controlos entre nenhuma das fronteiras da Irlanda e a Grã-Bretanha, essas ilusões são impossíveis de cumprir e é por isso que há muitos cidadãos britânicos mesmo alguns dos que votaram a favor da saída que estão desiludidos. Mas isso é um problema da democracia britânica, o nosso problema é outro é que a UE resista como um projeto de paz, um projeto de prosperidade e que possa proporcionar aos cidadãos o cumprimento das suas expectativas, essa é a nossa tarefa, esse é o nosso trabalho.

"As políticas precisam de responder aos anseios dos cidadãos"

A UE deve aproveitar este momento para se reinventar de alguma forma, agora esta saída do membro eurocético para fazer reformas aprofundadas?

Acho que, certamente, temos problemas com os nossos processos de decisão e as questões institucionais. Mas diria que mais importante do que isso é que se compreenda, a nível europeu, que as políticas precisam de responder aos anseios dos cidadãos, e portanto isto significa política económica e orçamental, o que é que estamos a fazer para responder ao abrandamento económico europeu? O que é que estamos a fazer para conseguir que as preocupações dos cidadãos com a questão climática tenha uma resposta a altura das circunstâncias? O que é que estamos a fazer para concretizar a transição energética? O que é que estamos a fazer para proporcionar desenvolvimento sustentável? O que é que estamos a fazer para dar aos cidadãos um sentimento de segurança e de que os seus problemas estão a ter resposta? E infelizmente uma certa degradação dos valores europeus é que tem impedido as respostas políticas a altura das circunstâncias, é isso que eu espero que possa ter uma evolução positiva em resposta ao Brexit.

Tanto quanto sei, há uma proposta da presidência do Conselho Europeu, sobre o orçamento de longo prazo, substancialmente inferior à proposta da Comissão que já é inferior à do Parlamento. Com que instrumentos vai então a união dar essa resposta adequada?

Não acho que seja correto descrever a situação como um quadro totalmente negro, porque de facto há situações diferentes. Há por exemplo iniciativas políticas muito importantes, em termos do pacto ambiental, o famoso Green Deal. E, portanto, uma determinação da UE de ser o líder do combate às alterações climáticas e da promoção do desenvolvimento sustentável. Isso é com certeza muito importante. Há também sinais da parte da comissão europeia em particular, - não de todos os estados membros, é verdade -, de que precisamos de ter uma política de emigração à altura dos nossos valores e que inclua alguma responsabilidade partilhada. Mas é verdade que em muitos outros domínios particularmente naqueles de que depende a convergência e a coesão e que tem muito que ver com questões de natureza financeira, o panorama não é animador. Espero que a negociação que está em curso sobre o próximo quadro financeiro plurianual permita ser um sinal de que realmente os estados europeus compreenderam o desafio que é colocado pelo Brexit, até ao momento é verdade, ainda não vimos isso. Mas aliás, o mesmo acontece com as reformas que precisamos de introduzir em matéria de união económica e monetária, de união bancária, de aprender com as lições da crise financeira internacional. Se nós virmos bem os passos que estão a ser dados nesses domínios tão importantes são passos lentos e nós precisamos de preparar a UE para responder a uma eventual crise futura e portanto também aí é preciso que as lições do Brexit funcionem como um apelo a andar mais depressa e na direção certa.

Muitos dos deputados despediram-se aqui no parlamento europeu com um "au revoir", ou com um até breve "à bientôt", admite que possa haver um regresso do Reino Unido à UE?

É importante tomar consciência de que a UE será sempre um espaço de porta aberta para o Reino Unido, assim exista ali a decisão política de regressar, mas isso é uma decisão que cabe aos britânicos tomar, da nossa parte cabe garantir que para já a UE quer construir uma relação económica e política sólida com este vizinho que é o Reino Unido e que está de portas abertas para poder haver um regresso do Reino Unido se essa for a decisão dos britânicos, mas isso é aos britânicos que cabe finalmente decidir.

 

Entrevistado por João Francisco Guerreiro, correspondente da TSF em Bruxelas,