Não podia ser mais grave: o Presidente da CMVM, Carlos Tavares, anunciou que foram já instaurados 80 processos (!) de averiguação preliminar por suspeitas de ‘insider trading' nas vendas "muito expressivas" de acções do BES que ocorreram à última hora, antes da resolução do banco.

Só o Governador do Banco de Portugal ainda não percebeu que algo correu muito mal.

Embora Carlos Costa insista que, formalmente, a decisão de resolução do BES só foi tomada às 18 horas de domingo, dia 3 de Agosto, não restam hoje quaisquer dúvidas de que os actos preparatórios da resolução tiveram início muito antes, envolvendo numerosas pessoas e entidades e potenciando enormemente os riscos de "insider trading". Ao que foi dito pelos próprios, foi no dia 25 de Julho que o Banco de Portugal e o Ministério das Finanças iniciaram a preparação de um "plano de contingência" para o BES; no dia 30, Vítor Bento foi informado, através da Ministra das Finanças, da inviabilidade da recapitalização pública (o que tornou a resolução inevitável); nesse mesmo dia, mas ainda antes da divulgação oficial dos prejuízos do BES, já o Banco de Portugal encetava diligências em Bruxelas, junto da Direcção-Geral da Concorrência, para garantir a compatibilidade da resolução com as regras comunitárias sobre "auxílios de Estado"; no dia 31 de Julho, a pedido do Governador (necessariamente formulado nos dias anteriores e implicando intenso trabalho jurídico conjunto entre o Banco de Portugal e o Ministério das Finanças), o Governo aprova, com carácter de urgência, o Decreto-Lei que regula o procedimento de resolução. Era tanta a consciência da sensibilidade explosiva do assunto, depois de na véspera terem sido divulgados os prejuízos dramáticos do BES, que o Governo optou por esconder a aprovação do diploma (omitindo-a no comunicado do Conselho de Ministros) e pediu ao Presidente da República uma promulgação especialmente urgente. Embora os fundamentos desse pedido não constem do Prefácio à última edição dos "Roteiros", sabe-se que foram tão convincentes que o Presidente da República se apressou a fazer a promulgação... no próprio dia! Estávamos, então, ainda na quinta-feira, dia 31 de Julho. Perante isto, não é possível negar que estavam em curso actos preparatórios da resolução, envolvendo um número cada vez maior de entidades e agentes, enquanto as acções do BES continuavam cotadas em bolsa. E tudo sem que ao mercado tenha sido dada qualquer informação.

Quando, por volta do meio-dia de sexta-feira, dia 1 de Agosto, o Governador do Banco de Portugal assumiu junto do BCE, por teleconferência, o compromisso de concretizar a resolução do BES durante o fim-de-semana, nem aí se sentiu no dever de informar a CMVM. E continuou a não prestar essa informação mesmo quando, já depois das três da tarde, telefonou ao Presidente da CMVM alertando para o movimento anormal que se registava na bolsa, com um volume astronómico de operações (só nos últimos 42 minutos foram transaccionadas 80 milhões de acções!) e uma queda abrupta das cotações do BES. O mais que disse nesse telefonema é que seriam divulgados "factos relevantes" sobre o BES durante o fim-de-semana, mas fez questão de não revelar quais.

A explicação que o Governador deu no Parlamento para esta sua reiterada omissão de informação à CMVM é simplesmente extraordinária: "não ia, obviamente, dizer à CMVM que ia haver resolução porque isso é da competência do Banco de Portugal".

O que é óbvio, porém, é exactamente o contrário: ter "competência" para tomar decisões, sejam elas públicas ou privadas, não isenta ninguém do dever de comunicar factos relevantes para defesa do mercado. Esse dever impende precisamente sobre as entidades "competentes" e só pode considerar-se acrescido quando se trata de uma entidade que partilha responsabilidades de regulação.

A verdade é que, com a sua visão redutora da cooperação entre reguladores, inspirada por uma paroquial "lógica de capelinha", o Governador do Banco de Portugal omitiu a comunicação de factos relevantes à CMVM e com isso impediu que fossem tomadas as medidas necessárias para assegurar a defesa do mercado e a protecção dos interesses dos investidores. A consequência sabe-se hoje qual foi: enquanto uns perderam tudo em poucos minutos, outros souberam o suficiente para ainda salvar muitos milhões.

 

Artigo de opinião publicado no Diário Económico de 27 de março e na sua edição online.