A extraordinária sucessão de "chumbos" de iniciativas do Governo no Tribunal Constitucional prova, para lá de qualquer dúvida razoável, um nível de incompetência no centro do Governo que supera todos os precedentes e toda a imaginação.

Mas não se trata apenas de incompetência: a fantástica ideia de cortar o subsídio de férias a uns e pagá-lo por inteiro a outros, em grosseira afronta ao princípio da igualdade, revela uma atitude persistente de pura má-fé constitucional.

Coube ao ministro Poiares Maduro, do alto das suas elevadas funções de coordenação política do Governo, explicar a brilhante interpretação a que a coligação PSD/CDS chegou depois de lido o Acórdão do Tribunal Constitucional sobre os cortes na função pública, indeferido que foi o expediente da respectiva aclaração. Visto que o Acórdão, por razões de interesse público, apenas produz efeitos para o futuro, salvaguardando os efeitos já produzidos pelas normas consideradas inconstitucionais, o ministro tirou daí esta magnífica conclusão: "relativamente a todos aqueles que receberam já subsídios de férias com cortes, não há qualquer alteração a fazer". A ideia do ministro, certamente apurada depois de muito pensar, é afinal muito simples: os que receberam parte do subsídio de férias antes da entrada em vigor do Acórdão do Tribunal, a 31 de Maio, tiveram azar e sofreram cortes inconstitucionais que não serão repostos; já os que receberem o mesmíssimo subsídio depois da entrada em vigor do Acórdão, têm sorte e recebê-lo-ão por inteiro. O ministro não nega que esta interpretação do Governo implica "um impacto diferenciado" para pessoas com direitos idênticos à mesma prestação e o líder parlamentar do PSD chegou mesmo a reconhecer que ela implica "desigualdades". Mas, dizem eles, é a vida: "são decorrências da decisão do Tribunal Constitucional" e "não há alterações a fazer".

Perante tamanho disparate, o Tribunal Constitucional precisou de toda a sua contenção para, em resposta aquelas alegadas "decorrências", se limitar a esclarecer, num sóbrio comunicado, que é simplesmente abusiva qualquer "ilação" que se pretenda tirar de uma aclaração que nem sequer foi feita. Seja como for, é evidente que nem o Acórdão do Tribunal Constitucional, nem o indeferimento da sua aclaração, autorizam a interpretação agora sugerida pelo Governo. Na verdade, sendo o montante do subsídio de férias habitualmente determinado pelo valor da remuneração do mês de Junho, que ficou isenta de cortes por força do Acórdão, o que se impõe é a correcção dos processamentos anteriores em conformidade com esse valor. E mesmo que assim não fosse, o que é absolutamente certo é que nunca poderia o Governo aplicar a lei orçamental optando por uma interpretação manifestamente desconforme à Constituição e resignando-se a um resultado que iria gerar um tratamento flagrantemente desigualitário entre cidadãos em iguais circunstâncias. Em suma: a interpretação proposta pelo ministro Poiares Maduro é, como ele bem sabe, simplesmente inadmissível por ser constitucionalmente proibida, como aliás será evidente para qualquer pessoa de boa-fé.

Sendo o disparate tão grosseiro, este exercício de má-fé constitucional, mais do que traduzir uma intenção para levar a sério, parece sobretudo destinado a alimentar uma gracinha de mau gosto para consumo na absurda guerra institucional que o Governo decidiu abrir contra o Tribunal Constitucional, beneficiando do silêncio cúmplice do Presidente da República. Quem certamente não tem razão para achar graça são os funcionários do sector público, mais uma vez vítimas de danos colaterais. Mas foi a isto que chegámos: a cabeça do Governo não tem juízo e o povo é que paga.

Artigo publicado no Diário Económico