O “desvio colossal” que existiu entre o glorioso discurso de campanha eleitoral de Passos Coelho e a sua trágica agenda governativa de empobrecimento não é um precedente democrático que mereça ser preservado.

Não se percebe o coro de indignação que vai nas hostes da direita só porque o Governo do PS está a reverter as medidas mais gravosas do governo anterior. Afinal, António Costa está apenas a fazer aquilo que prometeu: prometeu mudança e está a mudar.

É certo, nestes últimos anos quase perdemos o hábito de ter no governo quem cumpre as promessas que faz. E quem não está habituado, estranha. Mas convenhamos: o “desvio colossal” que existiu entre o glorioso discurso de campanha eleitoral de Passos Coelho e a sua trágica agenda governativa de empobrecimento não é um precedente democrático que mereça ser preservado. Pelo contrário, a nossa democracia precisa de uma outra cultura de respeito pela vontade dos eleitores. E por muito que isso desagrade à minoria de direita, os portugueses que nas últimas eleições legislativas votaram maioritariamente por uma mudança de política têm o legítimo direito de esperar que o Governo do PS, que obteve o apoio maioritário da assembleia representativa da nação precisamente em nome do seu propósito de mudança, se confirme como um Governo de verdadeira alternativa e não apenas de alternância. E não é mais do que isso o que está a acontecer.

É preciso recordar, por outro lado, que as medidas que estão a ser revertidas - essencialmente, medidas de austeridade, privatizações e sistema de avaliação do ensino básico - não foram introduzidas pelo governo anterior no seguimento de um processo de consensualização política e social que lhes desse quaisquer perspectivas de estabilidade. Pelo contrário, as medidas em causa é que entraram deliberadamente em ruptura com os consensos políticos e sociais longamente estabelecidos, quer quando foram garbosamente “além da ‘troika’”, quer quando confrontaram a opinião pública e as autarquias locais para fazer privatizações e concessões em empresas e serviços que sempre tinham sido públicos, quer ainda quando impuseram regras de avaliação das crianças do ensino básico ao arrepio de todos os estudos e recomendações internacionais. Também por isso, a reversão dessas medidas que agora acontece não pode constituir nenhuma surpresa. Trata-se apenas do regresso à normalidade: a normalidade dos salários e pensões pagos por inteiro, dos impostos sem sobretaxas, dos serviços públicos garantidos pelo Estado, dos exames apenas quando fazem sentido para a certificação nacional do percurso educativo.

Acresce que falta um mínimo olímpico de autoridade moral a quem critica estas medidas de reversão. De facto, aqueles que eliminaram, por razão nenhuma, o Programa Simplex, que suprimiram o Plano Tecnológico e que acabaram com as Novas Oportunidades não podem agora mostrar-se pesarosos porque o Governo do PS, vejam lá, está a desfazer a magnífica “obra” que o governo da direita deixou - para mais quando se trata de uma obra feita de cortes de salários e prestações sociais, impostos “enormes”, privatizações apressadas e exames absurdos que mais ninguém na Europa faz. O próprio Passos Coelho, aliás, na entrevista que deu esta semana, admitiu que se a agenda do actual Governo se limitar a desfazer as reformas do Governo anterior “vai esgotar-se depressa”. Ao dizê-lo, disse tudo o que havia para dizer sobre a solidez e a profundidade das tão aclamadas reformas estruturais feitas em quatro anos de governo da direita.

 

Artigo de opinião publicado no Diário Económico de 15 de janeiro e na sua edição online.