Trava-se hoje na Europa um braço-de-ferro decisivo a propósito da flexibilização da política orçamental. Finalmente, cresce a coligação favorável ao investimento e reduz-se o núcleo duro dos fanáticos da austeridade. Mas é triste que o Governo português insista em ficar até ao fim do lado errado.

O movimento a favor de uma revisão da política orçamental europeia, para a tornar mais compatível com o crescimento e o emprego, ganhou uma força imparável com a recente adesão do insuspeito Mario Draghi, líder do Banco Central Europeu. Em boa verdade, porém, este movimento não começou aí: é uma reivindicação antiga dos socialistas europeus, renovada nas recentes eleições europeias e assumida, com coragem e frontalidade, pelo primeiro-ministro Matteo Renzi, na abertura da actual presidência italiana do Conselho da União Europeia, no passado mês de Julho. Foi, também, a influência conquistada nas urnas pelo Grupo Parlamentar dos Socialistas e Democratas (agora indispensável para viabilizar a nova Comissão Europeia no Parlamento Europeu) que forçou o novo Presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, a assumir um triplo compromisso político de enorme significado: i) fazer uso de toda a flexibilidade permitida pelas regras orçamentais; ii) apresentar, a muito curto prazo, um volumoso plano de investimento, público e privado, no valor adicional de 300 mil milhões de euros; e iii) entregar a pasta dos Assuntos Económicos e Financeiros a um socialista, o francês Pierre Moscovici (que ocupará assim o lugar que era do liberal Olli Rhen, um dos principais responsáveis pelas fracassadas políticas de austeridade das "troikas" e pela gestão desastrosa da crise por parte da Comissão Barroso).

A cada dia que passa, este movimento ganha nova força. O presidente François Hollande pediu a convocação de uma reunião extraordinária dos líderes da zona euro para definir novas medidas favoráveis ao crescimento económico e discutir a "utilização plena" da flexibilidade consentida pelas regras orçamentais. E Manuel Valls, primeiro-ministro francês, tratou de explicar com clareza do que se trata: "É um apoio global da zona euro à sua procura interna que é necessário". Na mesma linha, o ministro das Finanças italiano, Pier Carlo Padoan, advertiu: "A Europa está numa encruzilhada: ou se mantém na deflação e no baixo crescimento ou então dá um golpe de rins e aposta em reformas estruturais e numa consolidação orçamental que sejam amigas do crescimento". O próprio Van Rompuy, presidente cessante do Conselho, reconheceu a necessidade de usar, "da melhor forma possível", a flexibilidade prevista nas regras do Tratado Orçamental e do Pacto de Estabilidade e Crescimento. E no mesmo sentido se fizeram ouvir muitas outras vozes, dentro e fora da Europa. Esta semana, Christine Lagarde, directora-geral do FMI, em entrevista ao jornal francês "Les Echos", apontou o dedo à Alemanha: "A Alemanha pode contribuir para a recuperação europeia através da distribuição dos rendimentos" e deve fazer uso da sua margem de manobra orçamental porque promover "investimentos públicos ou privados para financiar infra-estruturas seria benéfico".

Já não é possível ignorar toda esta pressão no sentido da revisão da política orçamental. Mas ainda é possível resistir-lhe e prolongar o braço-de-ferro. Foi o que fizeram as duas únicas vozes que se ergueram, contra toda a evidência dos péssimos resultados quer na frente económica quer na frente orçamental, para teimar na defesa da política de austeridade. Primeiro, naturalmente, foi o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, que ainda ensaiou uma patética interpretação correctiva das palavras de Mario Draghi. Depois, lamentavelmente, foi a ministra das Finanças de Portugal, Maria Luís Albuquerque, que escolheu a Universidade de Verão do PSD para explicar ao Mundo que tudo não passa de um equívoco: a ideia de que as regras orçamentais são rígidas "não é verdadeira" e a flexibilidade orçamental até "já existe". Olha que dois.

 

Artigo publicado no Diário Económico