Depois de o Primeiro-Ministro ter justificado o corte no 13º mês com o “desvio” na execução orçamental do 1º trimestre - à luz de dados divulgados na véspera pelo INE - o Expresso noticiou que a decisão já estava preparada antes de conhecidos esses números e que a sua verdadeira justificação era outra: precaução e vontade de “ir mais longe do que a troika”.

Desde o início, portanto, a teoria do "desvio colossal" foi adoptada como um conveniente pretexto para as medidas duras decididas pelo Governo, com o intuito de responsabilizar o Governo anterior por decisões impopulares, contrárias aos compromissos eleitorais e não caucionadas pelo memorando da "troika".

Só assim se compreende, aliás, a estranha dificuldade que o Governo sempre teve em explicar, de modo fundamentado, a origem exacta desses "desvios", que os boletins mensais da DGO não pareciam confirmar mas os dados do INE indiciavam. O enigma só começou a ter resposta quando se soube, já no final de Setembro - e por terceiros - que no défice imputado ao 1º semestre constavam dívidas escondidas da Madeira (cerca de 600 milhões de euros, quase metade por decisão do Governo Regional de... 30 de Junho!). Ficou claro que o Governo não explicava o "desvio" por razões de conveniência política: para adiar o mais possível a divulgação da situação da Madeira e para continuar a alimentar a ideia falsa do despesismo do Governo do PS no 1º semestre.

Percebe-se agora porque é que o Governo falou tanto do "desvio" dizendo afinal tão pouco. De facto, a maior parte do "desvio" identificado (3400 milhões de euros) não respeita à execução efectiva do 1º semestre mas sim à execução prevista para o 2º semestre. Daí a confusão deliberada entre desvio "encontrado" e desvio "estimado". Segundo o INE, o défice no 1º semestre, em contabilidade nacional, foi de 7 mil milhões de euros, o que compara com a meta indicativa da troika de 5400 milhões. A diferença terá sido, portanto, de 1600 milhões de euros (valor que inclui os 600 milhões da Madeira). Como está bem de ver, entre os 1000 milhões de défice adicional do 1º semestre e os 3400 milhões de que se fala para o final do ano estão não só os 600 milhões da Madeira mas também... mais 1800 milhões de euros de "desvios" previstos para o 2º semestre, em plena gestão do actual Governo. Embora o Governo fale como se este ano só tivesse um semestre, a verdade é que o "desvio" previsto para o 2º semestre é muito maior do que o registado no primeiro!

Quanto aos "desvios" do 1º semestre (os mil milhões que estão para lá das dívidas da Madeira) o OE para 2012 faz, finalmente, alguma luz sobre o assunto: 200 milhões de euros de encargos financeiros (comissões) com a própria ajuda externa (até aqui ocultos como "consumos intermédios"); 220 milhões resultantes da não distribuição de dividendos por parte da CGD e do BdP (para responder à situação criada com a descida dos ‘ratings' em consequência do chumbo do PEC IV); simples adiamento para o 2º semestre da obtenção de pelo menos 400 milhões de euros de receitas não fiscais (vendas e concessões) em resultado da crise política (recorde-se que o Primeiro-Ministro foi forçado a demitir-se a 23 de Março, ainda no 1º trimestre). A verdade pode ser inconveniente mas o alegado "desvio" no 1º semestre, na parte que ultrapassa a dívida escondida da Madeira, é, no essencial, consequência financeira directa do chumbo do PEC IV e da crise política que se lhe seguiu. E muito inferior ao desvio que o Governo espera ter no 2º semestre.

A lógica obsessiva de confronto com o PS pode servir para desviar as atenções das responsabilidades do Governo actual pelas suas próprias escolhas mas não contribui em nada para que se compreenda a complexidade dos problemas que o País enfrenta. E pior: é, em si mesma, uma medida temporária.

 

Artigo publicado no Diário Económico