A verdade é esta: foi por uma larga maioria que os juízes do Tribunal Constitucional declararam a inconstitucionalidade das medidas do Orçamento para 2014 de corte de salários, pensões e subsídios.

Mais uma vez, portanto, os juízes não se guiaram por critérios políticos, nem se dividiram por sensibilidades partidárias. Assim sendo, a diatribe institucional lançada pelo Governo e pelos partidos da direita só pode ser tratada como aquilo que é: um ataque inadmissível à justiça constitucional e ao Estado de Direito democrático. E um insulto à nossa inteligência.

"Portugal não pode estar num permanente sobressalto constitucional", disse o primeiro-ministro em resposta à "enorme adversidade" que foi este oitavo "chumbo" do Tribunal Constitucional às medidas do Governo. E acrescentou, para desfazer dúvidas sobre a verdadeira natureza do problema: "tem de haver uma clarificação política" (sic).

Deixemo-nos, pois, de jogos de salão: a "aclaração" que Passos e Portas pretendem não é técnico-jurídica, mas política. Mesmo concedendo a admissibilidade do pedido de "aclaração" (o que é tudo menos certo), fosse ele um sincero pedido de esclarecimentos e seria apenas sustentado em argumentos técnicos e formulado em termos respeitosos, não viria acompanhado de ataques inaceitáveis ao próprio controlo jurídico-constitucional dos actos legislativos da maioria e de verdadeiras provocações dirigidas aos mesmos juízes do Tribunal Constitucional que serão chamados a apreciar o pedido (devíamos ter juízes "melhores"; é preciso sujeitar os juízes a "maior escrutínio"; os juízes fizeram um acórdão tão ambíguo que pode sofrer de "nulidade"; se os juízes não aceitarem a aclaração estarão a "fugir às suas responsabilidades" ou a "desertar"; os juízes "só aceitam aumentos de impostos"; os juízes "não têm legitimidade"; os juízes estão "a meter-se na política"...). Não há dúvidas: o que o Governo fez foi declarar guerra ao Tribunal Constitucional.

Depois de oito "chumbos" no Tribunal Constitucional e de três orçamentos inconstitucionais, Passos Coelho e Paulo Portas perceberam muito bem que o que é inconstitucional não é esta ou aquela medida pontual do seu Governo e muito menos a sua exacta modelação. O que é inconstitucional é o próprio programa político de desigual distribuição dos sacrifícios que PSD e CDS pretendem executar para além da ‘troika' e em violação das suas promessas eleitorais. Ora, aqui chegados, das duas, uma: ou conformavam-se com a Constituição e desistiam das medidas inconstitucionais ou assumiam o confronto com o Tribunal Constitucional numa escalada de pressão, arriscando ou mesmo procurando uma crise institucional.

O que as declarações dos últimos dias mostram é que o Governo e os partidos da maioria não se conformam com a ideia de verem o seu poder governativo submetido aos limites impostos pela Constituição, tal como interpretada pelo órgão jurisdicional constitucionalmente competente. Esta guerra institucional, com todo o clima de dramatização artificial que a acompanha (francamente desproporcionado face às implicações financeiras do acórdão), visa, desde logo, fazer do Tribunal Constitucional o sucedâneo da ‘troika' enquanto "bode expiatório" responsável pela austeridade e pelo aumento dos impostos e, mais do que isso, pretende promover uma dupla "aclaração" política: por um lado, apurar se é ainda possível, por via de uma pressão acrescida, domesticar o Tribunal Constitucional de modo a condicionar as suas próximas decisões (sobre a CES, a contribuição de sustentabilidade, a fórmula de actualização das pensões, as contribuições para a ADSE e as tabela salariais e de suplementos da função pública) e, por outro, começar a construir o cenário para uma crise política clarificadora quanto ao futuro da Constituição e do contrato social. E é a essa derradeira "clarificação política" a que acabaremos por ter de chegar, mais cedo ou mais tarde.

Que esta inusitada guerra institucional ocorra numa altura em que a governação está sob olhar especialmente atento dos mercados e perante o silêncio ensurdecedor do Presidente da República, é sem dúvida extraordinário, embora talvez não seja surpreendente. Lembrar-nos-emos disso da próxima vez que os que agora se calam nos vierem explicar que são muito institucionalistas.

PS - Passos Coelho anunciou que não acompanharia Portugal no confronto com a Alemanha. Vindo de quem vem, não seria de esperar outra coisa.

Artigo publicado no Diário Económico