Ao fim de duas semanas em estado de negação, a ministra da Justiça veio finalmente reconhecer o óbvio: a sua reforma do mapa judiciário transformou-se num imenso "transtorno".

Não é possível escamotear a extrema gravidade do caso: a implementação desta reforma é um fiasco colossal que não pode deixar de ter consequências políticas.

O "transtorno" a que se refere a ministra foi descrito, de forma bastante sugestiva, pela insuspeita Associação Sindical dos Juízes Portugueses: "Os tribunais estão quase paralisados". Na verdade, é este o julgamento sumário que cumpre fazer destas duas semanas de catastrófica implementação da reforma do mapa judiciário, sendo que ninguém, nem mesmo a Ministra, arrisca sequer prever quando será reposta a normalidade. Entretanto, a localização e tramitação informática dos processos tornou-se um quebra-cabeças, muitas vezes insolúvel.

Regressou-se aos documentos em papel e anda toda a gente, pelos corredores e pelos contentores, com o coração nas mãos com os riscos de extravio de peças processuais, preterição de direitos e garantias, adiamento ou repetição de julgamentos e anulação ou prescrição de processos. Enquanto os operadores judiciários tentam desesperadamente salvar os processos urgentes, o sistema está, de um modo geral, reduzido a pouco mais do que a prestação de serviços mínimos. E fica até um bocadinho ridícula a discussão semântica sobre se esta quase paralisia do sistema de Justiça configura uma situação de "caos" ou um mero "transtorno".

Certo é que este ambiente caótico no sistema de Justiça não podia acontecer e não tinha que acontecer. Pelo contrário, a ministra da Justiça recebeu, em devido tempo, diversos alertas sobre os riscos inerentes à capacidade da plataforma informática Citius para suportar, em condições de segurança e operacionalidade, a migração electrónica de 3,5 milhões de processos e 80 milhões de documentos para as novas comarcas. Ainda assim, teimou obstinadamente em seguir em frente, mantendo o calendário que tinha anunciado. Diz agora que "teria adiado duas ou três semanas" se soubesse que havia problemas mas "não era esta a informação que tinha". O próprio presidente do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, responsável pela gestão do Citius, assumiu ter dado garantias à ministra de que tudo estava bem com o sistema informático mas apenas porque as recebeu de "um técnico". Graças a Deus, já está em curso um processo de averiguações para identificar o malvado.

Entendamo-nos: se é obviamente verdade que este "crash" informático terá uma explicação e uma responsabilidade técnica, que se prende com a incapacidade do sistema para suportar a sobrecarga derivada de uma tão volumosa migração de dados, já o fiasco na implementação do novo mapa judiciário tem uma explicação e uma responsabilidade política. Porque é puramente política a responsabilidade de verificar se estavam reunidas, ao fim de três anos, as condições técnicas necessárias para iniciar a implementação desta reforma; porque é política a responsabilidade por se terem ignorado os avisos sobre as fragilidades do sistema informático; porque é política a responsabilidade por não se ter assegurado um sistema alternativo ou ao menos um plano de contingência para a eventualidade dos riscos apontados se materializarem. E, sobretudo, porque é política a responsabilidade pela política.

Esta reforma do mapa judiciário, imposta contra quase tudo e quase todos, é filha da teimosia, da arrogância e da imprudência. Rompendo com o consenso estabelecido em torno do modelo das 39 comarcas, subjacente ao Pacto da Justiça de 2007 e ao Memorando inicial da ‘troika' de 2011 (que não previa, ao contrário do que falsamente diz a ministra, o encerramento de qualquer tribunal), a ministra da Justiça quis inovar e impor o seu próprio modelo, transformando a reforma para a racionalização do mapa judiciário numa reforma para o encerramento de tribunais. Escolhendo o caminho do confronto, escolheu também o caminho do isolamento e fez questão de não dar ouvidos a quem queria consensualizar soluções duradouras. É por isso que a Ministra não pode limitar-se a pedir desculpa pelo "transtorno" que a implementação da sua reforma está a causar no funcionamento regular da Justiça: tem de assumir até ao fim as responsabilidades. Porque são suas.

 

Artigo publicado no Diário Económico