Foi bonito, até emocionante, o ambiente festivo e o sentimento de orgulho nacional com o extraordinário triunfo de António Guterres na sua candidatura a secretário-geral das Nações Unidas - o mais importante cargo da política internacional. Como tive ocasião de lhe dizer pelo telefone no próprio dia da eleição decisiva, este seu êxito foi muito merecido. A notável vitória de Guterres, sublinhada por uma sonora aclamação no Conselho de Segurança, faz justiça às singulares qualidades pessoais e políticas de que Guterres deu provas em todo o seu já longo trajeto de intervenção cívica e política. E quando digo todo, é mesmo todo. Não por acaso, Ban Ki-moon destacou isso mesmo: "A sua anterior experiência de primeiro-ministro de Portugal (1995-2002), o seu conhecimento dos assuntos mundiais e a sua viva inteligência vão ser-lhe muito úteis para dirigir as Nações Unidas neste período crucial".

Agora que até fazem fila os aderentes de última hora ao guterrismo, é talvez altura de lembrar que o António Guterres hoje apontado como "um dos nossos melhores" é o mesmo que foi vítima de um dos mais duros ataques de que há memória na nossa vida político-partidária. É filha desse tempo a ideia que pretende dar por adquirido que Guterres teve êxito lá fora, mas fracassou cá dentro, tal como o é a tese justificativa que David Dinis sentiu necessidade de expor esta semana no "Público" segundo a qual "o Guterres de ontem não é o Guterres de hoje". Podemos assim aclamá-lo e partilhar a sua vitória sem problemas de consciência, nem sombra de contradição.

A verdade é que Guterres só há um: o que deu aulas de "borla" nos bairros pobres da capital, foi o mesmo que apostou no pré-escolar e investiu na educação; o que lutou pelos direitos dos refugiados, foi o mesmo que lutou pelos direitos do povo de Timor e criou o rendimento mínimo garantido para ajudar os pobres; o que mereceu agora a confiança da comunidade internacional, foi o mesmo que deu à Europa a Estratégia de Lisboa.

Claro está, o reconhecimento das qualidades de Guterres para secretário-geral das Nações Unidas não é incompatível com uma avaliação negativa dos seus governos. Mas tudo tem os seus limites: tanta exaltação das qualidades de Guterres só pode comprovar a tremenda injustiça dos ataques violentos que lhe fizeram e que muitas vezes desceram abaixo do limiar da decência. É por isso que Guterres, além de todas as qualidades que lhe têm sido apontadas, tem mais uma: a coragem interior. Foi essa coragem que não o deixou desistir apesar de injustamente atacado por muitos dos que agora o aclamam. Foi graças a essa coragem que seguiu em frente, para chegar onde chegou.


Artigo publicado no Jornal de Notícias