Quando pensávamos que já tínhamos visto tudo, eis que o Governo tira da cartola mais um coelho: o salário zero para os funcionários públicos colocados no regime de mobilidade especial há mais de 18 meses. A ideia do Governo é simples: “não pagamos”.

E estiveram eles reunidos tantas horas para isto!

Tomei a iniciativa de suscitar esta questão na Assembleia da República, durante a audição ao secretário de Estado da Administração Pública, Hélder Rosalino, para avisar o Governo de que, mais uma vez, está a entrar em rota de colisão frontal com a Constituição da República. De facto, entre outras disposições relevantes, a Constituição contém uma regra muito clara: "todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho" (artigo 59º nº 1, alínea a)).

A resposta do secretário de Estado foi surpreendente. Explicou ele que o entendimento do Governo era o de que a Constituição só garante aos trabalhadores o direito à retribuição "quando eles têm trabalho". Ora, como os funcionários colocados em regime de mobilidade especial (agora chamado "regime de requalificação") não têm trabalho distribuído, visto que o Estado não lhes arranja colocação nos serviços, esses trabalhadores, mantendo embora o vínculo laboral ao Estado, perdem o "direito ao salário" e, ao fim de 18 meses de sucessivos cortes na retribuição, entram em licença forçada sem vencimento (a menos que "optem" pela rescisão). A não ser assim, acrescentou, os funcionários ficariam a receber uma "renda" (sic) sem qualquer justificação. Eis aqui o fantástico racional deste raciocínio: o Governo acha que pode e deve tratar o salário destes trabalhadores como se fossem "rendas excessivas".

Esta resposta extraordinária revela muito mais do que aquilo que diz: mostra que o Governo não cumpre a Constituição não tanto porque não a conheça mas sobretudo porque não a compreende. _A verdade é que os mais elementares valores constitucionais, próprios de um qualquer Estado _de Direito democrático, escapam totalmente à sensibilidade e ao entendimento de quem nos governa. E é por isso que o Governo está sempre _a tropeçar na Constituição. É certo, num Governo que já fez dois orçamentos inconstitucionais talvez não fosse de esperar que alguém desse conta de mais esta inconstitucionalidade. Mas é pelo menos estranho que, em tantos conselhos de ministros de onze horas, nenhum dos ilustres membros do Governo se tenha lembrado de fazer esta pergunta: porque será que antes de nós nunca ninguém teve esta ideia, afinal tão simples, de deixar de pagar o salário aos trabalhadores?!

Como é evidente, a ser aceite este novo paradigma preconizado pelo Governo ficaria reduzido a cinzas todo o edifício constitucional e legal sobre o direito dos trabalhadores à retribuição e sobre a própria segurança no emprego. Desde logo, a proibição do despedimento sem justa causa tornar-se-ia imediatamente "letra morta", contornada pelos patrões através do mecanismo da não distribuição de trabalho, seguido da "licença forçada sem vencimento", ou seja, do salário zero.

O que o Governo pretende está à vista: exercer terrorismo salarial como instrumento de "chantagem" para alcançar o seu objectivo de 30 mil rescisões por alegado "mútuo acordo". Mas nenhum fim pode justificar este tipo de meios. Nem de acordo com a nossa Constituição, nem de acordo com os valores próprios de qualquer sociedade decente.

E, por falar em sociedade decente, sempre gostaria de saber que democracia cristã é essa em nome da qual o dr. Paulo Portas disse traçar a sua "fronteira" na chamada "TSU dos pensionistas" ao mesmo tempo que deixava do lado de cá dessa fronteira medidas tão grosseiramente ofensivas de valores fundamentais como o corte retroactivo das pensões ou o salário zero na função pública. À medida que se vai conhecendo melhor o novo programa de austeridade que o CDS aprovou com o PSD - e com o ministro não eleito Vítor Gaspar - vai ficando cada vez mais claro que a linha traçada pelo dr. Paulo Portas é uma fronteira longe demais.

 

Artigo publicado no Diário Económico