1. Acontecimento do ano: a eleição de António Costa

O acontecimento político do ano no sistema de partidos português foi, sem dúvida, a eleição de António Costa como novo líder do Partido Socialista e candidato a primeiro-ministro.

Todos os sinais confirmam que esta alteração tem tudo para se converter num verdadeiro ‘game-changer': elevadíssima participação eleitoral de militantes e simpatizantes; vitória esmagadora do novo líder; imediata subida do PS nas sondagens e agitação imediata nos outros partidos. Estes sinais mostram que António Costa leu bem a situação: a sua iniciativa de avançar para a liderança correspondeu ao anseio de uma larga parte da sociedade portuguesa.

A mais importante implicação desta alteração diz respeito à percepção que os portugueses têm sobre a capacidade do PS para ser uma alternativa confiável de Governo. Cometem um grave erro os que desvalorizam o papel das lideranças na política. António Costa trouxe à liderança do PS a imagem de um político experiente e sério, com uma vida de intervenção cívica e dedicação irrepreensível à causa pública; provas dadas em múltiplos cargos governativos e um desempenho autárquico excelente na maior Câmara do país. Os portugueses, por isso, conhecem-no e sabem que é alguém em quem se pode confiar. Mas António Costa trouxe, também, a imagem de um político capaz de construir pontes e alianças para lá das fronteiras do PS e com condições para mobilizar contributos qualificados nos sectores mais dinâmicos da sociedade portuguesa - e assim se explica, aliás, a maioria absoluta que obteve em Lisboa.

A lucidez com que recusou alinhar as suas prioridades pelos temas obsessivos da direita, impondo uma discussão sobre uma agenda política para a década verdadeiramente alternativa; a firmeza com que se manteve fiel ao seu calendário de preparação do programa eleitoral do PS e a sua prudência quanto à assumpção de compromissos neste tempo de incertezas; a demarcação clara face à política de austeridade e ao posicionamento do Governo na Europa; a capacidade que tem revelado de trazer os melhores para a primeira fila do combate político e parlamentar e a ampla renovação que soube fazer na direcção partidária; os significativos gestos de abertura que dirigiu aos outros partidos e a prestigiados cidadãos independentes - tudo sinais de uma liderança nova capaz de fazer a diferença e capaz de uma vitória clara nas legislativas de 2015.

2. A situação da direita: da derrota nas europeias à coligação incontornável

Se o PS enfrenta 2015 unido em torno de uma liderança nova, a direita, que sofreu nas eleições europeias de Junho a maior derrota da sua história, apresenta-se dividida e visivelmente descrente nas suas lideranças esgotadas, que arrastam consigo o peso tremendo de quatro anos de uma governação falhada, cheia de medidas injustas e promessas não cumpridas.
No PSD, Passos esclareceu que não deixará o poder pelo seu próprio pé: será ele o candidato nas próximas eleições. A escolha dos portugueses, portanto, será entre Passos Coelho e António Costa. Sendo obviamente impensável arredar um primeiro-ministro em funções, os militantes laranja resignaram-se à ideia, sem sinais de entusiasmo. Por seu turno, os sectores internos mais críticos, reunidos em torno de Rui Rio ou oriundos de certas linhagens cavaquistas, decidiram esperar por melhor oportunidade mas não mexerão uma palha para manter Passos Coelho à frente dos destinos do País. Todos - incluindo barrosistas, santanistas e marcelistas - preferem dedicar o seu tempo ao apaixonante exercício de se medirem uns aos outros a pensar nas presidenciais.

Se no PSD a equação gira em torno de Passos e dos outros, no CDS gira em torno de Portas e mais ninguém. Tal como sucedeu da última vez em que esteve no Governo, Portas entra no ano das legislativas com um grave défice de credibilidade: primeiro, porque pisou todas as linhas vermelhas e traiu todas as bandeiras emblemáticas do CDS, em especial como pretenso partido dos contribuintes e dos reformados; segundo, porque deu o dito por não dito no inesquecível episódio da demissão "irrevogável"; terceiro, porque quando finalmente teve poder para fazer alguma coisa, como vice-primeiro-ministro, foi um fiasco total na liderança da reforma do Estado.

É claro, Paulo Portas tem o sentido político suficiente para saber as inflexões que o Governo deve fazer para enfrentar as legislativas - e os sinais desse eleitoralismo multiplicam-se. Mas também sabe que o descontentamento é fundo e que muitos portugueses cortaram já emocionalmente com este Governo e, sobretudo, com Passos Coelho. Seja como for, apesar das acções de guerrilha de parte a parte e da péssima experiência das europeias, a grande fragilidade das lideranças da direita torna quase incontornável uma coligação pré-eleitoral PSD/CDS, que antecipará a mais que provável candidatura comum às eleições presidenciais de Janeiro de 2016. A soma dos votos dos partidos do Governo, para além de tirar alguma vantagem do sistema eleitoral e permitir aos mais optimistas ainda alimentar a veleidade de disputar a vitória nas eleições, servirá, sobretudo, para disfarçar a expressão pessoal da derrota que todos esperam.

3. O PCP encostado ao muro, o colapso do Bloco e o surgimento do Livre

À esquerda, se o PCP permanece igual a si próprio e opta por permanecer encostado ao muro à espera da revolução comunista, enquanto vai beneficiando do descontentamento geral para consolidar as suas posições, até com algum reforço, já o Bloco entrou em convulsão interna, incapaz de impedir a sangria dos seus melhores quadros e de travar o seu dramático colapso eleitoral. Como bem perceberam Ana Drago e Daniel Oliveira, o problema do Bloco transcende em muito a questão da liderança, seja ela carismática, bicéfala ou colegial: prende-se com o próprio desígnio estratégico do Bloco. O que está em causa é a razão de ser do Bloco e a sua função no sistema de partidos. Numa palavra: a sua utilidade para quem quer uma governação de esquerda.

O Livre, de Rui Tavares, agora reforçado com novas alianças, é a mais relevante expressão de vida nova à esquerda. Procura, obviamente, preencher o espaço, que o Bloco deixou livre, de uma esquerda disponível para a responsabilidade dos compromissos. Resta saber se terá o peso eleitoral suficiente para dar um contributo relevante em soluções de governabilidade.

4. Marinho e Pinto: ascensão, queda e refundação

Marinho e Pinto corporiza o mais poderoso xeque ao equilíbrio tradicional do nosso sistema de partidos. Se à surpreendente votação que obteve nas eleições europeias, através do Movimento Partido da Terra, se seguiram episódios vários que terão empalidecido o fulgor da sua aparição no sistema partidário, o poder de atracção do seu tipo peculiar de intervenção e o seu novo partido, o Partido Democrático Republicano, fazem dele a principal incógnita quanto à composição do sistema de partidos que resultará das eleições de 2015. Os que se apressaram a decretar o seu esgotamento ter-se-ão precipitado.

5. 2015: desafios para o sistema de partidos

Do meu ponto de vista, para lá dos eternos desafios de reforma do sistema político e de renovação e abertura dos partidos, os sinais de descontentamento na sociedade portuguesa, bem evidentes nas eleições europeias, mostram que o principal desafio do sistema de partidos em 2015 é proporcionar aos eleitores a oportunidade de um novo ciclo político e de concertação social, que traduza efectivamente um virar de página.

Com o mosaico partidário atrás descrito, parece evidente que a melhor garantia desse novo ciclo político, com as necessárias condições de governabilidade, passa por uma maioria absoluta do Partido Socialista. Mas com maioria ou sem ela, um verdadeiro virar de página exigirá sempre uma liderança forte do Governo, capaz de constituir uma alargada plataforma política e social de apoio sem permitir que os compromissos políticos e os processos de concertação se convertam na permanente procura de um mínimo denominador comum que degenere em paralisia da acção governativa.

Certo é que o sistema de partidos terá de encontrar em 2015 soluções de governabilidade sem contar com o contributo do Presidente da República. Por um lado, porque o próprio se auto-excluiu dessa função arbitral ao assumir, desde o início, o apadrinhamento da actual solução governativa e um posionamento de facção. Depois porque, tendo recusado antecipar as eleições, o Presidente chegará à hora da verdade das legislativas já em final de mandato, constitucionalmente limitado nas suas competências e politicamente diminuído na sua capacidade de intervenção.

Em 2015, o futuro do sistema de partidos estará, uma vez mais, nas mãos dos eleitores. É a eles que compete fazer o julgamento sobre estes quatro anos e sobre o que é melhor para o futuro do País. Como sempre acontece em democracia, o juiz é o povo.

Diário Enconómico, 31 de Dezembro de 2014